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Martha Leticia Mercado

Magistrada do Tribunal Eleitoral da Cidade do México. Graduada em Direito pela Universidade Nacional Autônoma do México, com especialização em Direito Eleitoral pela mesma universidade. Diploma em Direitos Humanos pela Escola de Prática Jurídica da Universidade de Zaragoza (Espanha). Associada CAOESTE

A Constituição Política da Cidade do México celebrou seu quinto aniversário desde que foi publicada em 5 de fevereiro de 2017 tanto no Diário Oficial da Federação quanto no Diário Oficial da Cidade do México. [1] Isso o torna uma norma constitucional jovem, sem ar despercebida de que, por trás dessa data significativa, havia um processo constituinte de interesse do ponto de vista da participação política das mulheres no nível subnacional. Em termos formais, a integração da Assembleia Constituinte da Cidade do México (doravante Assembleia Constituinte) fez da paridade de gênero sua própria, ou seja, em sua formação havia 49 mulheres do total de seus 100 integrantes. Mas não só isso, a participação dos deputados constituintes teve influência e impacto efetivo no trabalho legislativo, visível essencialmente nas questões debatidas com mais vigor pelo grupo feminino e na forma como se refletiam no texto constitucional local.

A representatividade e participação das mulheres nos processos constituintes é uma questão fundamental na legitimidade democrática do texto constitucional criado para a sociedade, uma questão que foi levada em consideração, por exemplo, no atual processo constituinte do Chile, onde foram estabelecidas regras de paridade[2] para que 77 mulheres fossem eleitas e 78 homens eleitos para integrar a Convenção Constitucional,  além de reservar alguns desses assentos para representantes de grupos historicamente marginalizados ou discriminados (povos originários). [3] Além disso, até agora apenas mulheres presidiram a Convenção Constitucional chilena. [4] Esse processo constituinte, como é conhecido, tem impacto nacional e, portanto, sua importância é maior, assim como os processos constituintes das últimas décadas na América Latina (Bolívia, Equador e Venezuela). [5] Por isso, é importante abordar e destacar experiências subnacionais, como nessa ocasião em que se propõe em específico, o processo constituinte da Cidade do México. A abordagem básica neste artigo é a de destacar precisamente a integração da Assembleia Constituinte, bem como suas comissões legislativas constituídas, a partir do enfoque da paridade de gênero e, de maneira geral, apontar a influência dos deputados constituintes no trabalho legislativo desse órgão.

A reforma da Constituição Federal do México de 2016, [6] em relação à mudança e transição do antigo território correspondente ao Distrito Federal para a nascente Cidade do México como entidade federativa da República Mexicana, envolveu, entre outras questões, a convocação de uma Assembleia Constituinte encarregada de estudar, debater e aprovar a nova ordem constitucional para a Cidade do México. Uma comissão, é claro, de enorme significado, mas também efêmera. Como qualquer órgão constituinte, ao cumprir seu propósito, foi imediatamente dissolvido. [7] Assim, a Assembleia Constituinte atuou a partir de 15 de setembro de 2016, data em que realizou sua sessão de instalação, até 31 de janeiro de 2017, na qual o Plenário aprovou todos os artigos. Uma duração de quase cinco meses.[8]

Outro fato notável na concepção do processo constituinte subnacional foi que a Assembleia Constituinte trabalharia a partir das bases estabelecidas no artigo 22 da Constituição Federal e no Projeto de Constituição que seria apresentado a ela pelo Executivo da Cidade do México. [9] Na verdade, a Assembleia Constituinte teoricamente não começaria do zero, por assim dizer, porém, no final, entendeu-se que esse órgão tinha todos os poderes para elaborar livremente o texto constitucional local, dentro dos limites da Magna Carta federal.[10]

No entanto, a forma como a Assembleia Constituinte seria integrada foi estabelecida antecipadamente no referido Decreto de reforma constitucional de 2016: um total de 100 integrantes que seriam eleitos de acordo com uma metodologia mista. A maioria, 60 integrantes, seria eleita pelo voto popular dos cidadãos de acordo com o princípio da representação proporcional, entre candidatos de mesmo modelo político e independentes. Os restantes 40 integrantes seriam nomeados de acordo com a seguinte distribuição: 6 pelo Executivo federal, 6 pelo Executivo local, 14 pela Câmara dos Deputados federal (entre seus membros) e 14 pelo Senado da República (entre seus membros). Ou seja, representantes populares e representantes de diferentes poderes públicos.

Embora não fosse uma exigência normativa expressa, o critério de paridade foi um dos principais eixos na integração e representatividade do órgão constituinte. Os deputados constituintes eleitos popularmente foram distribuídos 30 para mulheres e 30 para homens. Por sua vez, o Executivo Federal e o Executivo local fizeram o mesmo ao nomear 3 mulheres e 3 homens. Aqueles que não nomearam estritamente seguindo o padrão de paridade foram a Câmara dos Deputados (5 deputados e 8 deputados) e a Câmara dos Senadores (6 senadores e 8 senadores), principalmente devido a uma questão de representatividade de todas as forças políticas presentes naquele momento em seu meio, resultando na minoria de grupos parlamentares apenas tendo a possibilidade de nomear um de seus membros para representá-los. Posteriormente, na ausência de aceitação do cargo de um dos senadores nomeados e da recusa de um grupo parlamentar da Câmara dos Deputados em nomear alguém na cadeira que lhe correspondia, duas mulheres foram nomeadas. Ao final, a Assembleia Constituinte foi composta por 49 mulheres e 51 homens.

Como se pode ver, a formação da Assembleia Constituinte seguiu de perto o princípio da paridade. O próximo o importante deve ser dado internamente na integração do Conselho de istração e das comissões, que seriam organicamente responsáveis pelo estudo e decisão sobre o Projeto de Constituição apresentado pelo Executivo local, bem como a proposta de novas iniciativas e a proposta de emendas. Em primeiro lugar, deve-se notar que a Assembleia Constituinte continuou a aplicação do princípio da paridade de gênero e refletiu-a no Regulamento do Governo Interno. [11] O artigo 8º do regulamento supracitado estabeleceu expressamente que o Conselho de istração “[…] será formado sob o princípio da paridade de gênero.  Isso o encorajou a ser composto por 5 mulheres e 2 homens, embora a presidência tenha ido a um deles.[12]

Por outro lado, também na integração das comissões de parecer, foi exigido o acompanhamento do princípio da paridade de gênero, embora apenas para o Conselho Diretivo de cada comissão e não necessariamente aplicável a todos os membros da respectiva comissão, de acordo com a redação do artigo 22.2 do referido Regulamento. As oito comissões de opinião foram as seguintes: (1) Princípios Gerais; 2) Declaração de Direitos; 3) Desenvolvimento Sustentável e Planejamento Democrático; 4) Cidadania, Exercício Democrático e Regime Governamental; 5) Judiciário, Procuradoria da Justiça, Segurança cidadã e Órgãos Constitucionais Autônomos; 6) Prefeitos; (7) Povos e Bairros Indígenas e Comunidades Indígenas Residentes; e, 8) Boa Governança, Combate à Corrupção e Regime de Responsabilidade dos Servidores Públicos. Apenas duas dessas comissões foram presididas por mulheres, a Comissão de Direitos de Marcela Lagarde y de los Ríos – renomada pesquisadora universitária e feminista – e a Comissão de Prefeitos por Gabriela Cuevas Barrón – uma política de longa trajetória.

A formação conjunta da Assembleia Constituinte, indicada em linhas anteriores, contribuiu para que a voz das mulheres fosse influente e decisiva na construção da norma constitucional com perfil mais sensível ao coletivo feminino. Pode-se dizer que a Constituição da Cidade do México é um texto avançado e extenso na parte substantiva, [13] ou seja, no catálogo de direitos fundamentais, destacando principalmente a facilitação dos direitos sociais. E isso tenta, em termos gerais, encontrar um equilíbrio com a parte orgânica. Ou seja, os desejos colocados nos princípios, valores e direitos constitucionais têm sua contrapartida nas garantias e mecanismos de proteção criados para lhes dar efetividade na realidade.

Vista desde a perspectiva do constitucionalismo local, a Constituição da Cidade do México tornou-se um motor de mudança, ou seja, como modelo para futuras reformas em outras constituições das entidades federativas.

Nesse sentido, pode-se dizer também que é uma norma avançada no reconhecimento dos direitos das mulheres. [14] Entre as questões que foram promovidas e refletidas no texto constitucional estavam o direito da mulher de decidir sobre maternidade, direitos sexuais, direitos reprodutivos, violência obstétrica, paridade de gênero (especialmente no campo eleitoral), casamento civil igualitário, o reconhecimento das mulheres como grupo de foco prioritário na proteção e garantia de seus direitos fundamentais,  o reconhecimento do trabalho doméstico e assistencial, o não reconhecimento do trabalho sexual.

O trabalho da deputada constituinte Olga Sánchez Cordero – Ex-ministra do Supremo Tribunal Federal e atualmente senadora da República – na referida Comissão de Poder Judiciário, Procuradoria de Justiça, Segurança Cidadã e Organismos Constitucionais Autônomos, e em geral no acompanhamento da Assembleia Constituinte, foi reconhecido por seus pares. [15] Marcela Lagarde y de los Ríos, que como foi dito foi a presidente do Conselho de istração da Comissão de Declaração de Direitos, relata que na última sessão do Plenário da Assembleia Legislativa, as mulheres constituintes de todos os partidos políticos gritaram juntas: “50-50, nada menos, paridade”,[16] o que eu acho que resume bem a conquista da Constituição da Cidade do México,  um texto constitucional com foco de gênero, que já esteve em mais de uma ocasião sujeito a interpretações que lhe permitem permeá-lo avançado.

 

[1] A entrada em vigor foi diacrônica, uma vez que algumas partes do texto (especialmente a matéria eleitoral) entraram em vigor no dia seguinte à sua publicação e o restante até 17 de setembro de 2018. A isso deve ser acrescentado o desafio de vários dos preceitos da Constituição da Cidade do México perante o Supremo Tribunal de Justiça da Nação (doravante Supremo Tribunal de Justiça). Nesse sentido, veja a ação de inconstitucionalidade 15/2017 e seu acumulado; a resolução desse caso foi dividida em dois acórdãos, o primeiro de 17 de agosto de 2017 e o segundo de 6 de setembro de 2018. Ambos disponíveis em: https://www2.scjn.gob.mx/ConsultaTematica/PaginasPub/DetallePub.aspx? Subjetivo=212728.

[2] PONCE DE LEÓN SOLÍS, V. (2021). “La paridad de género en el proceso constituyente chileno: alcances, expectativas y desafíos”. Revista de Derecho Político, núm. 112, p. 397.

[3] Site de interesse da Convenção Constitucional: https://www.chileconvencion.cl/

[4] Sucessivamente Carmen Gloria Valladares, Elisa Loncón Antileo (representante do povo Mapuche) e María Elisa Quinteros, atualmente no cargo de Presidente da Convenção Constitucional.

[5] É nessas experiências que os estudos estão focados, entre outros, RUBIO MARÍN, R. (2020). “Mulheres e processos constituintes contemporâneos: desafios e estratégias de participação”. Revista de Estudos Políticos, nº 187, pp. 43-69 e GARAY MONTAÑEZ, N. (2018). “Processos Constituintes na América Latina e Mulheres: Outras Subjetividades, Outra Constituição”. Revista Geral de Direito Constitucional, núm. 28.

[6] Nós nos referimos ao Decreto por el que se declaran reformadas y derogadas diversas disposiciones de la Constitución Política de los Estados Unidos Mexicanos, en materia de la reforma política de la Ciudad de México, publicado no Diario Oficial de la Federación de 29 de janeiro de 2016.

[7] A oitava disposição transitória do Decreto da Reforma Constitucional de 2016 dizia: “Após a publicação da Constituição Política da Cidade do México, as funções da Assembleia Constituinte cessarão”.

[8] Em termos comparativos, a Convenção Constitucional chilena tem um prazo de nove meses para elaborar a nova Constituição, além de ter a possibilidade de solicitar uma prorrogação de até mais três meses.

[9] Na elaboração do Projeto de Constituição, o então Chefe de Governo da Cidade do México considerou conveniente abrir a elaboração do documento aos cidadãos interessados. Nesse sentido, foi um grupo de 30 pessoas (incluindo “especialistas, acadêmicos, líderes sociais e organizações cidadãs”) que foram encarregadas de preparar o Projeto em questão. Veja também Iniciativa com projeto de Iniciativa con proyecto de Constitución Política de la Ciudad de México, que remite el C. Jefe de Gobierno Miguel Ángel Mancera Espinosa. Disponível em: http://proyecto.constitucion.cdmx.gob.mx/. Entre os membros do Grupo de Trabalho estão Juan L. González Alcántara Carrancá e Loretta Ortiz Ahlf, que mais tarde serão eleitos membros do Supremo Tribunal de Justiça da Nação. Marta Lamas Encabo, também renomada especialista em feminismo.

[10] Da mesma forma, foram enviadas propostas a ele, como a do Instituto de Pesquisa Jurídica da UNAM (2016). Apuntes para la Ciudad en la que queremos vivir. Insumos para la Asamblea Constituyente de la Ciudad de México. México: IIJ-UNAM.

[11] Regulamento para o Governo Interno da Assembleia Constituinte da Cidade do México, publicado no Diário Oficial da Federação de 18 de outubro de 2016.

[12] RODRÍGUEZ CALVA, María F. e FRÍAS, Sonia M. (2020). “Violencia contra las mujeres en política. El caso de la Asamblea Constituyente de la Ciudad de México”. Revista Mexicana de Ciencias Políticas y Sociales, Nº 240, p. 361.

[13] Sobre o conteúdo do padrão fundamental local, CÁRDENAS GRACIA, J. (2018). “Una visión general de la nueva Constitución de la Ciudad de México”. Boletín Mexicano de Derecho Comparado, Nº 153, pp. 791-834. Cárdenas Gracia, que era deputado constituinte, manteve uma posição crítica do texto constitucional resultante.

[14] É significativo quando o artigo 11, inciso C, da Constituição da Cidade do México prescreve: “Esta Constituição reconhece a contribuição fundamental das mulheres no desenvolvimento da cidade, promove a igualdade substantiva e a paridade de gênero. As autoridades tomarão todas as medidas necessárias, temporárias e permanentes, para erradicar a discriminação, a desigualdade de gênero e todas as formas de violência contra as mulheres.”

[15] OLSON, G. (2017). “Lista la Constitución de la Ciudad de México”. Excelsior, 31 de janeiro. Disponível em: https://transparenciaelectoral.noticiascatarinenses.com/comunidad/2017/01/31/1143256

[16] GARCÍA MARTÍNEZ, A. (2017). “Constitución de la CDMX, la mejor del país: Marcela Lagarde”. Cimacnoticias, 3 de fevereiro. Disponível em: https://web.archive.org/web/20180923052226/https://www.cimacnoticitransparenciaelectoral.noticiascatarinenses.com.mx/etiqueta/comisi-n-carta-de-derechos